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Ideologia


Era uma pessoa, não sabiam a estatura, a cor de seus olhos, cabelo ou pele, nem sabiam o que passavam pela sua cabeça, também não sabiam seu gênero, sua religião ou a sua posição política. Tal pessoa, tão aparentemente indiferente a realidade que te cercava, distoava entre o sentimento de sim ou não como uma forma de escolha cega baseada em suas possíveis pretensões sem pretensão alguma. Chorava como qualquer pessoa e também amava e era igualmente amado. Amigos, amigas, familiares, colegas de trabalho e demais pessoas próximas a ele carregavam certa admiração, uma empatia, já ele parecia não ligar tanto assim, embora de maneira quase que paradoxal, como se algo dentro dele não o permitisse deixar de sentir, ele também ligava de vez em quando.


Conforme o seu crescimento foi tornando o ser que deu a humanidade o entedimento do mundo que temos ou tivemos dentro de nós, ele negou muito daquilo que tornava-o nada mais do que apenas isso, humano. Dizia não querer saber muito sobre essas coisas, também dizia que não era para ele, que não entendia muito e que por ser muito difícil não buscaria entender de nenhuma forma. Algumas pessoas tentavam explicar mas de alguma forma pedaços na sua mente apareciam e sumiam quase que de repente, se não, gradualmente. Não lia muitos livros e nem via muitos filmes, apenas os que passavam na televisão ou os muitos vídeos e textos pequeniníssimos que apareciam em seu celular.


Não tinha cor favorita, a menos que escolhessem pra ele. Não sabia para onde olhar, a menos que através dos olhos de uma máquina ele por de lá olhasse. Não sabia por onde andar, a menos que algum alguém sem saber quem ou o que lhe mostrasse a maneira certa de onde andar. Como não tinha quase nada ou nenhuma dessas coisas, preferiu ficar parado, sentado encima de um muro que dividia o mundo em duas partes mais ou menos iguais, ele esgueirava pelas bordas do muro evitando tropeçar e acabar no acidente fatal de cair em algum desses lados, ele tinha muito medo de cair, mas era muito tentador ao menos ir para um desses lados, ele já não aguentava mais se equilibrar por tanto tempo assim sem pestanejar. Não era um muro muito grande, também não era muito firme, não protegia nenhum dos lados mas mantinham cada um em seu devido lugar.


Ao lado esquerdo pouco se via, não estava demasiado amostra pois alguma coisa impedia-o de ver, parecia tímido mas também não parecia se esconder tanto, era um lado que aparentava ter algo de muito estranho acontecendo ali, ele estava curioso, mas sua curiosidade sempre era cortada pelo medo de cair de cima do muro, talvez se ele fosse um pouquinho e depois voltasse, só pra ver como é, tirar uma dúvida, mas era cansativo demais, as pessoas ao lado esquerdo do muro pareciam estar de muito longe, ele tentava enxergar daquela distância, pareciam acenar ou gritar alguma coisa mas pouco se ouvia ou se entendia sobre o que falavam. O esforço para fazê-lo descer era bastante, mas o medo de cair daquele muro era muito maior por menor que fosse a queda. Ele tinha medo do que viria a frente e não queria saber pois tinha medo, medo de sentir, medo de se lembrar que é humano.


Ao lado direito vasto não era só o horizonte, mas também as possibilidades, todas muito parecidas, na verdade quase iguais. Tinha um jeito pomposo, as vezes cínico, apesar de todas essas coisas que pareciam não incomodá-lo, ele conseguia ver, enxergar e ouvir muito bem tudo o que diziam para ele. Faziam perguntas para ele, pareciam interessadas no que ele tinha para dizer, ele não sabia o que responder, disse que não descia do muro de jeito nenhum e então as pessoas do lado direito respondiam e explicavam para ele que na verdade as coisas sempre foram assim mesmo, nada poderia ser mudado e que não pode ser mudado, disse para ele não se preocupar, que ele não precisava sair de cima do muro e ir para o lado direito, porque mesmo assim ele conseguia enxergar e conversar com eles, então problema algum havia nele continuar ali naquela distância de estar, mesmo deixando de ser, mesmo negando ser.


De algumas horas para cá, naquela boa conversa entre os demais do lado direito, ele não conseguia resistir ao anseio utópico de não existir, de não pertencer, de querer deixar de estar, deixar de ser, de não querer fazer parte daquilo pois ele não tinha nada a ver com aquilo. Então uma enorme multidão do lado esquerdo vindo lentamente em marcha gritava e ecoava para que o descesse imediatamente, ao contrário do lado direito que quase nem se esforçava em fazê-lo descer, pois não fazia diferença para eles, pois se ele descesse ou ficasse as coisas permaneceriam, como disseram, da mesma forma sempre. Os gritos ficavam gradualmente mais altos ao passo que incomodava os ouvidos do lado direito. O lado direito dizia várias coisas para ele permanecer inapto, preso ali como apenas um peso existencial. Os gritos do lado esquerdo surtiam discreto efeito sobre a pessoa encima do muro, mas ainda assim o lado esquerdo não parava, resistia a indiferença, a antipatia.


O lado direito era confortável porque era cinza, e na tristeza a pessoa encontrava extremo conforto, era realmente muito bom não fazer nada, não mover um dedo se quer para o lado direito e nem para o lado esquerdo, ele até se orgulhava disso, dizia que não era de nenhum dos dois lados com muita certeza mesmo não percebendo que o muro que separava os dois lados mantinha o status quo que dava ao direito o poder de calar, e ao lado esquerdo poder algum além do seu próprio conjunto que dava cada vez mais alcance a mensagem que ecoava da multidão.


O lado esquerdo era colorido, havia quase nada, mas também havia muita coisa. Não tinham glamour nem tanto luxo quanto o lado direito, mas tinham uns aos outros e isso os fortalecia. O muro era a única barreira ótica que dava o sinal de desconforto para a pessoa de mover um dedo em direção a multidão, ele se perguntava, me contento com a negligência do meu próprio ser ou aceito ser mesmo não entendendo para que lado ir? Não sabia para onde apontar a sua visão então fechou os olhos, dessa vez, realmente, nada enxergava. A escuridão dava unidade ao pensamento confortável de negar ambos os chamados. Mas com o olhar fechado, e tudo escuro, se desengonçou. A multidão gritava mais e mais, o lado direito o olhava com indiferença, é só mais um. Então ele caiu, sem perceber, no lado direito do muro. Não era uma derrota para o lado esquerdo, mas uma perda inestimável de uma vida, agora completamente morta, antes apenas de alma e agora completamente de corpo.


O lado direito respondeu com brilhismo a sua morte, tirou fotos e gravou muitos vídeos, apareceu no jornal no que o apresentador comentou que era uma tragédia mas que ninguém mandou ele ficar encima do muro, era tudo culpa dele e nada poderia ter sido feito para ajudá-lo, então foi melhor assim. O lado esquerdo lamentou a sua morte, mas mesmo depois de todo o ocorrido continuaram a gritar entre os horizontes, o som que cada vez mais enfraquecia o muro e ameaçava destrui-lo com a força das muitas vozes em conjunto uníssono, um futuro aonde aquele muro não mais existiria além de apenas como uma lembrança de um passado muito ruim de uma humanidade dividida entre aqueles que calam e aqueles que são calados.