Consulta na Oftalmologista
Sair de casa sem fogo é muito estranho, o frio que te comove e a chama que não chama mais, a garganta úmida, a mão tremendo, o nublado cinza em abraço. E essa ânsia que anseia a falta, a falta do sentir nublado seco novamente, e a dor, a dor perene que fagulha o fogo que não acende mais, contrasta nessa bossa confusa, as várias tentativas de não te acender nunca mais.
Sair de casa sem fogo é muito estranho, só trouxe a carteira com documentos e dinheiro, as chaves de casa e o meu casaco, não trouxe a rua o aquecer dialético que levava entre os dedos das minhas mãos, Hegel ficaria confuso se me visse assim dessa forma, despido mesmo usando calças e camiseta, nu, completamente nu, embora completamente coberto.
Sair de casa sem fogo é muito estranho, eu espero o ônibus com pressa e a pressa nada resolve, já fazem anos que esperam o mesmo ônibus e eu ainda não cheguei a lugar algum. Que lugar então ficou eu se me movo em constante, talvez no Norte ou um pouco mais ao Sul, eu realmente não sei, eu nunca me encontrei.
Sair de casa sem fogo é muito estranho, eu estendo a mão no ponto de ônibus e embarco, o boa tarde entrelaça o motorista cansado, eu passo na roleta e observo a minha volta. Pego um banco ao lado da janela, está quase completamente vazio, se não fosse pelas poucas senhorinhas que ali próximas a mim sentavam e conversavam sobre as glórias do passado.
Sair de casa sem fogo é muito estranho, sentado agora olho pra janela, os respingos anteriormente fracos vão tornando em oceanos caindo do céu, são as lágrimas dos anjos caídos que recaem sob o solo impiedoso deste planeta, ante de ontem vi um enquanto comprava pão, estava sozinho com suas asas negras no balcão esperando para o pagamento, segurava um saco de pães de sal e doce comum, algumas rosquinhas também pareciam o acompanhar. É no débito ele disse, no que conferindo a nota fiscal se despede e vai para casa.
Sair de casa sem fogo é muito estranho, os fones tocam um dia na vida enquanto o exécito britânico ganha outra guerra depois de eu ter visto um filme na noite passada, estava assentado eu e meu cachorro Godard, a composição de imagem era a mais bela que já vi, até a minha avó ao qual nunca se interessara por filmes antes inclinou-se os olhos para a tela da televisão e atônita hipnotizada assistiu a tudo em completo silêncio os beijos nunca dados de um casal num filme de Wong Kar Wai.
Sair de casa sem fogo é muito estranho, eu desço as escadas do ônibus, no que vou de encontro ao meu destino, a cidade de carros aonde pessoas andam encontrando e desencontrando vazios aonde ainda cabem os seus passos. Mas era como se atrapalhássemos o tráfego, já que os pedestres podiam acabar por atropelar os pobres carros, imagina que prejuízo seria a traseira de um carro completamente destruída por um mero mortal!
Sair de casa sem fogo é muito estranho, entrego meu documento sem perguntarem meu nome, sento e logo sou chamado, a primeira a esquerda eu pego o meu outro assento na segunda recepção, aguardando me chamar no consultório oito. Elzira Ester dos Reis da Silva é chamada no consultório três enquanto Roberto Luiz Gonçalves na sua frente está no consultório oito, os dois nem se conhecem mas seus nomes ficam marcados nas telas em que olham os olhares ansiosos de quando serão convocados.
Sair de casa sem fogo é muito estranho, meu nome é chamado no telão e eu sigo de encontro ao consultório, dou dois toques na porta e a abro no que sou abraçado por uma escura sala de oftalmologia, o boa tarde dá as mãos, a doutora pede para que eu me sente. Ela me pergunta o motivo da minha visita, eu estou aqui para ver se estou vendo de mais ou vendo de menos, ela responde que as vezes estamos vendo apenas o suficiente.
Sair de casa sem fogo é muito estranho, ela me deseja uma boa semana, respondo o mesmo e volto para a rua após descer as escadas. Sou novamente atravessado pelos curtos espaços de segundos de um tempo ao outro dos vários semáforos colorindo essa cidade. Eu paro, aguardo e agora sim eu posso atravessar a rua. Alguns carros até param educados para que eu e mais alguns outros possam passar, nós sempre nos desculpamos por atrapalhar o tráfego, gentileza gera gentileza é o que escrevem em cartazes. E mesmo apesar de chegar em casa depois de alguns poucos minutos, com a cabeça latejando de doer, com a mente tracejada ao instante que me vejo anoitecer, sair de casa sem fogo continua sendo muito estranho.